1.11.13

Os Santos e as campas



Nunca fui particularmente adepta de oferecer flores aos mortos, sempre me pareceu um considerável desperdício. Mesmo aquela portuguesa romagem aos cemitérios no primeiro de Novembro sempre me pareceu vagamente artificial. Ou seja, sempre a achei mais para fora que para dentro.

Vamos ao cemitério, carregados de flores (os ramos que sabemos que são precisos, mais a meia dúzia de flores extra para o caso de ser preciso tratar de uma campa que não estava no plano inicial), o garrafão da água, a tesoura de podar, o trapo para limpar o vaso ou a pedra, o saquito de plástico para os lixos.
Tentamos despachar a coisa mais ou menos depressa, não que não tenhamos gostado muito das pessoas que agora são os "nossos" mortos e não que não acarinhemos as memórias bonitas que temos delas e com elas, mas há coisas de vivos para tratar e essas (com muita justiça) são mais prementes.

Pelo caminho vemos pessoas que só encontramos nesse dia do ano e nesse local (o cemitério entenda-se). Pessoas de quem não gostamos particularmente, mas que cumprimentamos como pessoas educadas que somos. Damos uns beijinhos, sentimos a cara vagamente suja de maquilhagem ou só suor (sim, mesmo em Novembro), esperamos que as pessoas não estejam a olhar para nós para limparmos a cara com a mão e lá vamos à nossa vida que, durante esse bocado desse dia, é dedicada aos mortos. Essas pessoas, que sentem por nós o mesmo que nós por elas, pensam: "Vá lá, vá lá! Não páram por cá muito mas sempre vieram dar um jeito na campa da _____(acrescentar relação de parentesco adequada)".

Então paramos ao pé da primeira das "nossas" campas e limpamos a pedra e/ou o vaso, tiramos os restos de flores mortas, o pó, a água choca e as lesmas. Tiramos também o lixo que se vai acumulando, algum resto de vela de um familiar mais crente que nós (e que os "nosso" morto). Cortamos os pés das flores do ramo à medida certa (se correr bem) pomos no vaso, deitamos água para elas se aguentarem melhor (não que alguém as vá ver se não no próprio dia, mas enfim) e seguimos para a campa seguinte, das "nossas".
Depois das "nossas" campas confirmamos se as que são só meias "nossas" estão arranjadas; fazemos o jeito de tratar da campa de um morto meio-"nosso" se o primo que lhe correspondia não pôde vir e assim as pessoas do parágrafo acima podem pensar dele o mesmo que de nós.

No fim de tudo isto metêmo-nos no carro de volta (mais leves em flores e água) e vamos à parte que realmente interessa do dia. Passar a tarde com os vivos. Aqueles de quem moramos mais longe do que gostaríamos e que vemos muito menos do que deveríamos.

Eu não gosto do nosso ritual externo do culto dos mortos, mas sei que é a forma de todos os anos, pelo menos uma vez, lancharmos juntos os vivos (senão todos, mais uns quantos do que é costume) e lembrarmo-nos dos que já não se sentam à mesa mas fazem parte da nossa história, de quem fomos e somos. É no dia de Todos os Santos que mais provável é eu ter um sorriso igualzinho ao do tio Não-sei-das-quantas "já não o conheceste, mas és mesmo parecida" ou ouvir contar "daquela vez que fomos todos ao Sto António da Neve, ainda o João não era nascido".

Verdade, verdadinha é quando é mais provável que os nossos idos mais queridos venham sentar-se connosco à mesa.

Por isso é que é tão vil roubar-nos o feriado no Dia de Todos os Santos, porque é quererem roubar-nos do convívio dos vivos e a memória dos mortos.

Mas deve fazer parte, afinal roubando-nos a memória é mais fácil roubarem-nos o salário e fazerem-nos trabalhar de graça. É o que estamos a fazer hoje: trabalhar de graça.