30.6.22

"Minha mãe chamou-me Rosa"


Na quarta classe chegou à nossa sala uma menina nova, a Rosa. Era só Rosa, nesse tempo (e nessa escola) as crianças não usavam apelidos a menos que houvesse nomes próprios repetidos, o que, sendo nós 15, era improvável. O tempo dos apelidos chegava mais tarde, no ciclo, quando já éramos nós a preencher os impressos da burocracia de início de ano e não os nossos encarregados de educação. Na escola primária a Rosa era só Rosa.

Acho que ela não chegou bem no início do ano. No ano anterior tinha sido eu a menina nova. Os meus pais tinham decidido mudar-me para a escola pública e eu gostei da ideia. Custou-me apanhar o comboio da exigência da escola pública, trazia uma certa modorra escola anterior, mas depressa a perdi. Mas voltando à Rosa, ela não era de Coimbra, vinha de fora. No início do ano tínhamos recebido outro menino novo que vinha de fora. Era português mas vinha de França e falava mal a nossa língua, o Fred. Os pais dele eram portugueses e tinham decidido voltar. Era fixe, o Fred, custou-lhe isso de falar mal o português. Lembro-me de ele pedir para ir à "casa-bem", de ser corrigido e de estar a tentar dizer "casa-de-banho" com um ar um bocado aflito. No recreio não havia problemas, afinal, para jogar à bola não é preciso saber falar bem português.

Mas voltando à Rosa.

A Rosa não tinha vindo com os pais, vivia com os padrinhos e era mais velha que nós uns dois anos. Apesar de mais velha, estava na nossa sala sem haver noção de que tivesse chumbado nenhum ano, inclusivamente  parecia mais ignorante que nós em várias coisas. Não em todas, a Rosa, do cimo dos seus onze ou doze anos sabia cozinhar (e não estamos a falar de ovos mexidos) e era quem cozinhava boa parte das refeições em casa dos padrinhos. Também era quem tratava das limpezas, todos estávamos habituados a dar uma ajuda, tratar do meu quarto, levar o lixo ou lavar a loiça de vez em quando, mas a Rosa era a única criança que eu conhecia que tinha como tarefa limpar a casa. A competência mais extraordinária da Rosa, ela deu-nos a conhecer no Carnaval. A Rosa sabia costurar! Chegou à escola com um fato feito por ela e não era um fato qualquer, era um traje de casamento minhoto! De saia rodada e todo bordado, cheio de missangas!

Não sei de onde vinha a Rosa, sei que no ano lectivo de 1993/94, 20 anos depois do 25 de Abril, vivia longe dos pais, escrava de uns padrinhos que a tinham "trazido da terra" e lhe roubavam a infância em tarefas domésticas a troco de frequentar uma escola que era obrigatória desde a Primeira República.

Também não faço ideia do que foi feito da Rosa, mas espero que a vida lhe tenha sorrido bem mais a ela que aos seus padrinhos.

26.6.22

Se a hipocrisia pagasse imposto

Em 22 de Janeiro de 1973 a Suprema Corte dos Estados Unidos da América entendeu que o direito ao respeito à vida privada garantido pela Constituição daquele país se aplicava ao aborto, tornando-o legal em todo o território, independentemente das leis de cada estado sobre o tema. A 24 de Junho de 2022 a Suprema Corte derrubou essa decisão e devolveu aos estados o poder de decisão sobre a criminalização do aborto.

No seguimento das notícias sobre essa decisão várias personalidades à cabeça de várias instituições vieram pronunciar-se. Por exemplo:

“O secretário-geral (António Guterres) há muito que acredita que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos são a base de uma vida de escolha, empoderamento e igualdade para as mulheres e raparigas do mundo” Farhan Haq (porta-voz da ONU)

Não consigo deixar de achar curiosa esta formulação. Não sei quanto tempo é muito tempo para o Eng. António Guterres, mas eu lembro-me que a posição dele sobre a saúde e os direitos reprodutivos da mulher não era bem essa há 24 anos, quando o seu próprio partido (PS) propôs e fez aprovar na Assembleia da República um projeto de lei que previa a legalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), a pedido da mulher durante as primeiras 10 semanas. Nessa altura, o beato então Primeiro Ministro do Governo Português fez um acordo com o então líder do PPD-PSD Prof. Marcelo Rebelo de Sousa obrigavam o país a um passo atrás fazendo um acordo para a realização do primeiro referendo do país, precisamente sobre a despenalização da IVG. Eram, pelo menos à época, ambos contra a despenalização da IVG a pedido da mulher.

Até chegarmos aqui já tinha havido várias iniciativas legais neste tema: 

  • Novembro de 1982, pelo PCP, um projeto de lei prevendo a despenalização da IVG, até às 12 semanas que foi chumbado;
  • Janeiro de 1984, pelo PS, um projeto de lei que previa a despenalização da IVG em caso de perigo para a saúde física e psíquica da mulher, violação e malformação do feto, que foi aprovado e que, na prática, mantinha o aborto clandestino uma vez que não bastava a vontade da mulher para que pudesse acontecer.
  • 1996, três projetos de lei: um pelo PCP e outro pelo PS que despenalizavam a IVG até às 12 semanas a pedido da mulher e outro que alargava os prazos para a IVG legar no caso de malformação do feto e de violação, também pelo PS.
  • Janeiro 1998, a par com o projeto de lei apresentado pelo PS o PCP apresentou também um projeto de lei visando a despenalização da IVG a pedido da mulher, nas primeiras 12 semanas.
O referendo realizou a 28 de Junho de 1998, um Domingo de sol e calor, depois de uma campanha abjeta por parte da Igreja e dos partidos da direita (sim, eu sei, a diferença não é muita). A abstenção foi de 68,1% dos inscritos, votaram 2 709 503 pessoas. Dos votos validamente expressos 49,1% foram a favor da despenalização e 50,9% contra. Assim, por opção do Eng. António Guterres e do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, 15% da população recenseada portuguesa decidia continuar a atirar para o aborto clandestino as mulheres mais pobres do nosso país (as outras iam a Espanha). As mulheres com menor acesso à saúde, ao planeamento familiar, à vida em geral eram empurradas para o vão de escada, para o carniceiro ganancioso e, se sobrevivessem, para o banco dos réus!

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Nesse referendo tinha 14 anos, não podia votar e foi o primeiro murro no estômago que apanhei em processos de votação. Não que as minhas preferências tivessem alcançado grandes vitórias antes, mas desta vez eu achei mesmo que era possível.
Por causa desta opção, tivemos que esperar 9 anos para poder voltar a almejar a opção, para voltar a almejar a dignidade e a saúde reprodutiva das mulheres. Sim, das mulheres, aos homens sempre pôde ser indiferente o aborto, porque sempre pôde ser indiferente a gravidez. 
Também em 2007 a campanha do "Não" foi um asco. Lembro o engajamento não só da Igreja e dos partidos da direita, mas do capital nesta campanha. Os meios financeiros dos partidário do "Não" eram enormes, até bonequinhos de borracha a retratar fetos humanos tinham! Fomos, os partidários da escolha, da saúde e da dignidade insultados de tudo o que imaginem, mas saímos vitoriosos, todos, o país todo e sobretudo as mulheres mais pobres, porque passou a ser possível realizar a IVG legalmente, em segurança e no Serviço Nacional de Saúde.
Deixo aqui a título de exemplo e para memória futura o vídeo em que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa tornava pública a sua posição contra a despenalização da IVG por pedido da mulher. Quando nos lembramos disto é fácil perceber que ele não condene o retrocesso nos EUA, ou mesmo que não consiga chamar-lhe retrocesso.




"A grande lição é que esta viragem traduz uma posição mais conservadora, no caso das armas, e mais doutrinária, no caso da interrupção voluntária da gravidez" Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República Portuguesa)


Só em 2007 pudemos referendar novamente a despenalização da IVG. Dessa vez votei, estava a viver em Espanha e vim expressamente para fazer campanha e votar. Foi a única vez que tive franco prazer a contar votos, mas isso não me fez perdoar. Não me esqueço, Sr. Engenheiro, não me esqueço.


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