15.3.11

Qualquer dia, qualquer dia

Eu hei-de ser uma daquelas pessoas que viveram esses tempos horríveis em que não se tinha um emprego estável, em que não se sabia se se teria trabalho no mês seguinte, ou na semana seguinte.

Saberei contar a história dos que passaram de ser dos quadros da função pública a estarem na mobilidade especial.

Serei desses tempos em que as pessoas se perguntavam quanto tempo mais demorariam a encontrar trabalho porque há vários meses que procuravam sem sucesso.

Serei desse tempo em que as pessoas sobreviviam de biscates taxados a 30 % do que recebiam.

Serei desse tempo em que um licenciado, um mestre ou mesmo um doutor poderia estar a desempenhar trabalho altamente qualificado durante anos a fio sem que isso fosse contabilizado para a idade de reforma ou contando como se recebesse o ordenado mínimo para o cálculo da pensão de reforma porque não tinha um emprego, tinha uma bolsa. Mas também serei do tempo em que o Estado desperdiçava o investimento (cada vez menor, é certo) feito na formação académica dos seus cidadãos empurrando licenciados e mestres para as caixas dos supermercados, o desemprego e a emigração.

Serei desses tempos difíceis de imaginar em que a educação se pagava e era só para alguns e a saúde também.

Serei desse tempo em que os idosos morriam de fome ou de doença porque se se medicavam não comiam e se comiam não se medicavam.

Serei daquela época negra em que havia milhares de pessoas a passar a noite em caixas de cartão dentro de multibancos.

Terei vivido aqueles anos estranhos em que as negociatas espoliavam o Estado do dinheiro dos contribuintes e se tapavam os buracos saqueando salários e pensões de reforma.

Farei parte dessa fatia da população que pode contar a história de quando os corruptos chegavam a lugares de poder e ficavam impunes mesmo quando havia provas contra eles apuradas pela polícia.

Serei uma dessas pessoas que contarão como era preciso deitar contas à vida e ver na bola de cristal o futuro antes de decidir ter um filho.

Terei netos que não entenderão como os bancos puderam algum dia ser privados.

Contarei o conto de como em tempos idos havia blocos político-militares que governavam além fronteiras.

Serei uma dessas pessoas que saberão contar como era quando a economia controlava a política e não ao contrário.

Serei alguém que poderá contar como o Povo se levantou e disse "BASTA!".

Um dia o Portugal em que vivemos fará parte do imaginário dos meus netos da mesma maneira que o fascismo faz parte do meu; e eles estranharão o velho de maus vinhos que no café dirá "No tempo do capitalismo é que era, a ver se não andavam todos em sentido, não era como agora, não!".

E esse dia já esteve bem mais longe.

3 comentários:

  1. Esta antevisão bela e revolucionária faz-me lembrar Agostinho Neto:

    O meu lugar está marcado
    no campo da luta
    para conquista da vida perdida.

    Eu sou. Existo.
    As minhas mãos colocaram pedras
    nos alicerces do mundo.
    Tenho direito ao meu pedaço de pão

    Sou um valor positivo
    da Humanidade
    e não abdico,
    nunca abdicarei!

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  2. Ainda que não sejam os meus netos... Lá chegaremos...

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  3. Como tu própria dizes, citando um amigo teu, "tudo passa, até a uva passa..." :)

    Cá estaremos. Confia!

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